1.6.04

AINDA NÃO
musalia7@hotmail.com

O fim de semana anunciava-se relaxante. O cansaço acumulado durante os últimos dias fez-me aninhar confortavelmente em casa, abraçar o meu canto, desejando apenas usufruir desse estado em que tudo flutua e em que nada nos prende os sentidos. Porém...

Há muito desejava revisitar Akira Kurosawa e o belissimo Ainda Não. Enrolei a preguiça, segui o fio narrativo e deixei-me contaminar. A sequência das imagens metafóricas confirmou o deslumbramento da primeira vez. Absorvi o decorrer da história, interseccionada pela canção, quase com função de coro premonitório, "(...) veloz passa o tempo/os meses e os anos (...) no Jardim da Sabedoria (...) o salgueiro cresceu, atingiu a sua altura máxima", a exaltação da personagem principal "(...) nem todos são grandes homens, mas um grande homem tornou-se professor (...) pensamos em tudo o que lhe ficamos a dever" e fixei-me no ponto de viragem para o sonho, flashback de uma vida e prenúncio de algo que morre para poder renascer.

A partir daqui, o campo semântico é reconstruído pela beleza metafórica das colorações do céu em pano de fundo onde se desenham os três planos simbólicos dessa vida: no primeiro, a infância do protagonista, no jogo infantil de esconde-esconde, o intermédio, no sopé da montanha onde a vida se vai desenrolando e repetindo e, mais próximo da linha do horizonte, o cume da montanha como ponto de chegada mas, também de transformação. É essa linha do horizonte que o professor/criança contempla, onde se desdobra o jogo "Posso? Ainda não!", eivado de uma multiplicidade de sentidos que se dispersam entre a aprendizagem, o amadurecimento, a perfeição e a rebeldia de quem nunca está pronto para partir.

Em final impressionista, em que as tonalidades do céu transmitem não as impressões da luz mas as marcas que a vida vai imprimindo ao longo do tempo e que se determinam em pinceladas entre o ouro e o rosa do amanhecer, reflectindo, em crescendo, os verdes, os azuis, os violetas e os arroxeados sobre fundo que escurece. Para, no momento final a cor regressar, lentamente ao rosa dourado inicial, como continuidade de um ciclo que se renova infinitamente. E, o lindissimo L’estro armonico de Vivaldi (concerto 9 in D Major, op.3) acompanhando, subtilmente todo o filme.

Afinal, fim de semana de impressões em percursos que me convidaram o olhar. Outros olhares, decerto, lhe acrescentarão o sentido.

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