23.5.04

DEAMBULAÇÕES
musalia7@hotmail.com

Sigo o ritmo do barco e atravesso o rio. Os meus pensamentos rasgam a bruma e enchem-se do ouro jaldelino do velho Terreiro a que a proximidade do Tejo empresta colorações venezianas. Recolho o marulhar da água em lufadas tranquilas ao longo do cais das colunas e da ribeira das naus e, fechando os olhos, quase capto os acordes da Casa da Ópera e o tilintar dos tesouros das Casas de Ceuta e da Índia junto ao velho Paço da Ribeira, deslocado da antiga Alcáçova do Castelo.
Inicio o percurso à beira rio demorando-me no olhar límpido do vendedor de castanhas que me estende o cartucho de forma maquinal, rosto sulcado por fina teia de rugas. Aconchegada no calor que se liberta das pedras seculares, embrenho-me, em seguida, nas ruas de traçado rectilíneo de gosto pombalino. Não me guia um itinerário definido, apenas me entrego a esta sensação de bem estar que sempre embala as minhas deambulações pela Baixa citadina e cruzo os espaços acertando os tempos com as memórias. Subo a Rua do Alecrim, de odores desvirtuados pela essência dos raminhos de violetas nos cestos das vendedeiras e pelo aroma do café da Brasileira, ao cimo do largo das duas igrejas e a ambos cedo, amainando o passo e o pensamento. Notas de uma cantata de Bach saltitam nos degraus do pórtico da Igreja dos Mártires, entro e aquieto-me na embriaguês intensa desse amor descoberto no início da adolescência.
Acalmia e silêncio devolvem-me à calçada onde me misturo ao palpitar da cidade.

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