26.12.04

espreitando...


Três embalagens, uma de iogurte e duas de vinho.

Cheguei cedo, ontem. O corredor balançava entre aromas de especiarias e o adocicado dos doces festivos. Mas nem isso libertou o frio que me guiara entre as ruas estreitas.
As velhas casas pombalinas, de tectos altos, são pouco acolhedoras. Aninhei-me junto ao aquecedor até quase sentir as mãos queimarem de calor.
No prédio em frente, luzes acesas deixavam entrever interiores, pessoas andando apressadas, roçando a complacência que só naquele dia deixavam transparecer. Sempre senti uma curiosidade infantil em observar vivências escondidas, protegidas entre os muros das casas. As janelas funcionavam como pequenos ecrãs, captando cenas, desajustadas do seu contexto total. Depois, era fácil imaginar histórias que, seguramente, nada tinham da realidade dos personagens que se cruzavam nesse espaço. Ou tinham e eu nem me apercebia.
Os ruídos na cozinha chegavam-me difusos. Coloquei um cd e mergulhei no ritmo da melodia, deixando o corpo diluir-se em movimento. De uma forma incómoda, senti um olhar pousado em mim, na janela em frente alguém observava os passos de dança que esboçara. A contrariedade deu lugar ao riso. Afinal, uma história começara a delinear-se, exterior à minha.
Aproximei-me da janela e uns olhos divertidos, risonhos, responderam ao meu sorriso aberto.
Olhei para o cunhal do prédio. Na saliência, por debaixo da varanda superior, vi, com espanto as embalagens que nos últimos anos aí tinha descoberto.

Três embalagens, uma de iogurte e duas de vinho.

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