11.9.05

adenda ao post anterior...

...e tudo por causa do K2ou3...


Veneza, a pintura veneziana, o Grand Tour e as vedute

Hoje, bastante despovoada, Veneza está em risco de se tornar uma cidade meramente turística, um local de vilegiatura de luxo, dispendiosa. Mas nem sempre foi assim...

Tempos houve, em que uma pequena confederação de habitantes, fixada na estreita faixa de terra entre o Pó e o Timavo, forma um ducado unido por relações privilegiadas ao Império do Oriente e, por relações de subsistência, ao Império do Ocidente. Recusando o domínio dos lombardos, esse núcleo opta pela soberania do imperador romano que reinava em Bizâncio e instala-se em zonas inacessíveis por terra,. A sua sobrevivência definia-se entre o comércio marítimo com o Adriático e o Levante até Constantinopla e as costas egípcias, e o comércio fluvial subindo os cursos de água da Vénétie.
Depois da tentativa falhada dos francos de se apoderarem da "Veneza marítima", os Veneteci (como eram denominados estes habitantes) são empurrados, cada vez mais, para o mar. Novas áreas são então recuperadas aos canais, lagunas e viveiros, reforçados os diques de modo a possibilitar a expansão da cidade que se verifica, ao longo dos séculos XI e XII. É precisamente nessa época que surgem os palácios, explêndidos nas fachadas de materiais polícromos, com as torreselle (hoje apenas simples vestígios), as arcarias de colunatas com capitéis e cornijas laboriosamente esculpidas, os arcos bizantinos alongados, substituídos logo depois pelos arcos em ferradura de origem moçárabe e acrescidos pelo arco trilobado gótico.

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(Palazzi dei Dogi)

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(Ca’ d’Oro)

Em arquitectura, será o império, do gótico-veneziano.
No século XIII, durante a 4ª cruzada, Veneza apodera-se de grande parte de Constantinopla e do império bizantino controlando o já enfraquecido império latino do Oriente.
É neste tempo que se traçam os contornos da Veneza dos nossos dias.


A pintura veneziana retira da tradição bizantina ou maniera greca como Vasari lhe chamou, o gosto pela cor, luz, espaço e finalmente, pela forma. Depois do saque de Constantinopla (1204), os Venetici enriquecem a Igreja de S. Marco com os painéis da Pala d’Oro retirados da Igreja do Pantokrater. O que ressalta neste finissimo trabalho, é o brilho translúcido das cores, as figurações libertando manchas coloridas diversas, com predominância das tonalidades vermelha e dourada. À distância, a impressão é de uma superfície ofuscante pela fusão de todas as cores.

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(Pala d’Oro)

Esta fusão de decorativismo descritivo também característico do mosaico, outro contributo da arte bizantina, vai reforçar ainda mais a influência oriental na pintura. Ao observarmos os mosaicos de Kariye Camii, na Igreja do Salvador em Chora, último reduto dessa arte, apercebemo-nos de como que uma evocação de espaço e de luz através da pigmentação. É esta utilização das possibilidades da cor, que está no centro da pintura veneziana.

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(Kariye Camii)

Construída sobre a água, Veneza possuia um ambiente atmosférico suavizado pela evaporação que transportava efeitos visuais em mutação constante. As fachadas dos edifícios, cujas pedras revelavam uma porosidade e erosão devida à salinidade das águas, pareciam absorver a luz como se nela se diluíssem. É pois, neste diálogo entre a tradição e o ambiente da cidade, que nasce a pintura veneziana, atribuindo-se a Paolo Veneziano (c.1300-c.1360) o fundador da sua escola, no século XIV. Este pintor renovará a própria tradição bizantina, animando o hieratismo das figuras com uma acentuada volumetria e emotividade corpórea.

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(Paolo Veneziano, A Coroação da Virgem, 1324)


A partir do Trecento, Veneza, considerada a porta e a ponte entre o Oriente e o Ocidente, apresenta-se como o centro difusor da arte, através das rotas comerciais dos navios.


O Grand Tour e a expansão das vedute

O Grand Tour, resumia no século XVIII, além do complemento de uma educação aprimorada entre a aristocracia, o gosto imenso pela arte e pela arquitectura antiga. Partia-se para essa "peregrinação’" com base em relatos de viagens e colecções de vistas de lugares que constituíam os guias impressos para o Grand Tour. Uma das colecções mais procuradas era a de Giovanni Battista Piranesi (1720-1778) , a Vedute di Roma que incluía os capricci ou paisagens onde se dispunham ruínas imaginárias para convocar um efeito romântico.

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(Giovanni Battista Piranesi, Villa Hadriana)

O que se pretendia , afinal, no Grand Tour, eram registos de memória, através dos registos topográficos. Estes fixavam paisagens panorâmicas, fragmentos de paisagens com recortes geográficos específicos, monumentos antigos e vistas de cidades, as vedute. Itália, era um dos destinos mais procurados e Veneza uma das suas cidades mais visitadas.

As vedute fixavam vistas topográficas da cidade, estando ligadas, muitas vezes às suas festividades e, tão importante como a paisagem, era a reprodução do bulício da vida citadina. Tinham a sua origem nos "ciclos narrativos" realizados na Scuola e preenchiam os pedidos de encomendadores estrangeiros para exportação.

Entre os pintores de vedute, sobressaiem dois nomes que se tornarão famosos por toda a Europa: Antonio Canaletto (1697-1768) e Francesco Guardi (1712-1793).
Detentor de grande sensibilidade visual, Canaletto nas suas primeiras vedute, utiliza os contrastes fortes de luz e sombra em pinceladas livres sobre a textura do suporte.

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(Canaletto, The Stoneman’s yard, 1727-8, London, National Gallery)

na década seguinte evolui do chiaroscuro para uma suavidade tonal e as suas vedute deixam-se envolver por uma luminosidade que se estende a todo o conjunto pictórico.

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(Canaletto, Bacino of San Marco)

o grande espaço aberto, articula-se em perfeita harmonia com a estreita linha de edifícios e com os traços horizontais e verticais dos mastros das embarcações. Todo o conjunto é suavizado pelo efeito dos tons rosa e azul da luz veneziana. A atmosfera levemente envolta em bruma, dá um toque quase mágico à veduta.

As telas de Canaletto foram encomendas de estrangeiros, encaminhadas para o exterior, o que explica a quase ausência da sua vasta obra em Veneza.

Francesco Guardi, segundo a maioria dos historiadores de arte, foi o grande e último pintor de vedute. Embora as suas primeiras telas demonstrem a influência de Canaletto, diverge no modo como pinta as figurações, delineando-as em contornos esbatidos, inconsistentes, diríamos, quase feéricas. Em pinceladas soltas, leves, torna o conjunto de edifícios e figuras algo espectrante, numa interpretação fantasiosa.

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(Francesco Guardi, Fire at San Marcuola, 1789)

nas suas lagunas, utiliza uma paleta de grande delicadeza de tonalidades monócromas, esverdeadas e cinzento azuladas. Em transparências de jogos de luz e sombra contrapõe planos, convocando um ambiente quase nostálgico às suas composições.

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(Francesco Guardi, The laggon looking toward Murano from the Fondamenta Nuove (1765-70), Fitzwilliam Museum, Cambridge, 1784-89)

a sua visão romântica da cidade, envolta em fluidez atmosférica e luminosa, faz com que pareça mais uma criação da imaginação, sem vida, do que a descrição da realidade. Alguns historiadores de arte consideram que Guardi foi o primeiro pintor a representar Veneza com o olhar de um estranho, de um turista. Guardi, afinal, transmitia apenas a sua mágoa interior pelo declínio da sua cidade.

A arte veneziana desaparece em 1793, ano da morte de Francesco Guardi. Quatro anos depois desaparece a própria República Serenissima.

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