27.9.04

a guerra das especiarias


Há muito que lhe notava um tom amuado. Inclinada, recusando o lugar que lhe destinara, caía-me de propósito nas chávenas do chá, deixando aquele aroma enjoativo de baunilha. Tentei colocá-la, apertadinha, entre o raminho de hortelã e os coentros, mas nada, exigia o lugar que lhe competia junto à prateleira das especiarias, no lado oposto da cozinha.
Mas havia um problema, o pequeno escaparate de madeira acolhia os parzinhos já concertados e a lotação excedia o aceitável. A velha prateleira vergava-se ao peso de tanta cor e animação. Só havia um jeito. Comprar novos frascos, esguios e altos, e pôr de lado as curvas sedutoras das bojudas caixinhas de vidro. Deitei mãos à obra, fui ao IKEA e lá encontrei as formas e as quantidades requeridas. Mudei tudo e dei o lugar tão desejado à vagem de baunilha.
Andava radiante! De manhã, despertava ao som mavioso do dueto das flores de Lakmè, para o qual seduzira a voz maviosa da canela. E era um encanto, os versos harmoniosos, viens , Mallika, les lianes en fleurs / jettent déjà leur ombre /sur le ruisseau sacré qui coule, calme et sombre /eveillé par le chant des oiseaux tapageurs, saltitando dos frascos e enchendo as prateleiras onde todas as especiarias se alinhavam. Mas o cravinho da Índia, aproveitando a distração da malagueta, começou a afinar a voz lançando olhares lânguidos à baunilha, tentando seduzi-la com o belissimo la ci darem la mano e, aproximando-se perigosamente da beirinha, tentava recolher na sua, a mão da vagem perfumada. Engano seu, ela só tinha olhos para o alecrim, cheiroso, esguio e escorreito. Como tudo é desencontro nesta vida, os olhares do alecrim recolhiam apenas o brilho afogueado da paprika que, dardejando em arroubos de ciúme, lançava bem alto a sua ira advertindo, l’amour est un oiseaux rebelle qui n’a pas de loi / si tu ne m’aiimes pas et moi je t’aime, prends garde à toi ! E neste estontear de libretos, o açafrão acenava em desagrado suspirando la donna è mobile.
O sossego transformou-se em desatino e a harmonia em confusão. A vagem de baunilha voltou para a prateleira, junto ao fogão e tudo regressou ao normal. Mas não me perdoa, hoje, já me caíu duas vezes na caneca do café.

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