Qualquer coisa no copo me atraía o olhar. Lembrei-me de um hábito que me vinha, inexplicavelmente, da infância. Quanto mais fino era o copo, mais provável era partir-se na minha boca. Não era premeditado, antes um impulso incontrolável apenas sentido no momento em que o cristal tocava os lábios. E era, sobretudo, um momento embaraçoso. Lembro-me de um dia, em visita a uma família amiga, depois de uma brincadeira de toca-e-foge, entrei na cozinha para matar a sede. Quando a minha mãe se apercebeu, já o lindo copo de cristal transparente, com barra trabalhada a azul se partia, lenta e silenciosamente. Sob o olhar imperdoável da dona da casa e o olhar enfurecido da minha mãe, percebi que algo de mau acontecera quando eu, afinal, apenas acolhera a sensação que o toque do vidro me comunicara.
A pouco e pouco, o domínio desta tendência irresistível, acompanhou o correr dos anos. E desapareceu.
O travo da marguerita pedia-me o roçar dos lábios na superfície forrada a branco, em pequenas partículas que se desfaziam na resistência oferecida aos dentes. O líquido, sorvido em pequenos impulsos, enchia a boca, e o sabor escorria pela garganta, em ondas provocantes de calor. Até que o copo se esvaziou, deixando a descoberto a sua nudez desamparada. Foi nesse ponto que a vontade de prender o vidro transparente se tornou irresistível e os meus lábios procuraram as formas, em ânsia crescente de ouvir o som cristalino que os dentes, em carícia suave, despertariam no rebordo já em quebranto.
Perante o espanto do meu acompanhante, o copo voltou a quebrar-se, sem que uma única gota de sangue escorresse da minha boca. Apenas o brilho do baton, avivado pela bebida húmida e terna, aflorou aos meus lábios.
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