14.9.04

tango


Saíra mais cedo na noite anterior. Queimava-a o desejo de outro encontro esperando na sombra de um sentimento ainda por definir. Hoje, o som de um tango enchia o espaço, afagando o seu reflexo no espelho. Girou em meia volta, permitindo o amplexo de notas soltas, certificando-se da perfeita simbiose entre o tecido do vestido e a pele tensa e ansiosa. Olhou a mancha gritante, de palavras emudecidas, palpitando apenas no respirar apressado de lábios entreabertos, delineados em expressão enigmática que nem ela conseguia entender. Como se o corpo lhe fosse estranho, respondendo a uma vontade exterior, ou a um chamamento intenso aninhado num recôndito abandonado até esse momento.
Abriu a porta e entrou. O ritmo estonteava em passos arrebatados seguindo os pares, cruzando olhares, inflamando os corpos no jogo de entrega e repúdio. Era assim, o tango. Introduzia-se no sangue fazendo latejar o compasso e a melodia invadia o corpo embriagando, soltando a paixão já latente nos movimentos iniciados.
De relance, apercebeu-o ao fundo da sala, chapéu inclinado espreitando o sorriso nervoso, aflorando em expectativa. Atravessou a distância, pisando as notas, recolheu a rosa pendurada na lapela, prendendo-a na boca. E deixou-se enlaçar.

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