17.11.04

acordes



Hoje encontrei o Paulo. Virando a esquina dei de caras com os seus olhos grandes, doces, hesitando entre coser-se com as paredes e anunciar um olá de sorriso envergonhado.

Vertiginosa, a memória recuperou momentos esquecidos. De um grupo de amigos que decidira aprender as harmonias da dança, o Paulo representava o silêncio das pautas, escondido na contracapa dos passos executados até à exaustão. Partilhava o esvoaçar das valsas, a alegria do jive e a sensualidade do tango com o par que lhe fora atribuído, a Dolores. Cheia de uma vivacidade esfusiante, era o contraponto da insegurança, do trocar constante de ritmos e coreografias do Paulo.

As brincadeiras da dança, cumpriam um objectivo final, as competições entre as várias classes. E era um afã de cores, de escolha divertida de tecidos e fatos apropriados a cada dança. Mas havia a parte séria, conseguir decorar e executar na perfeição, as coreografias ensinadas pelos professores. E aí, não havia escolha, ou nos empenhavamos ou eramos excluídos. Mas tínhamos brio, e as noites prolongavam-se até os passos sairem correctos e o cansaço adormecer os corpos.

Dolores e Paulo dançavam o paso doble. E ele, a cada volta, parava, desistia. Ela, pegava-lhe na mão e, pacientemente, recomeçava. E assim até à noite da competição. Pouco antes de se ouvirem os acordes da dança, todos os pares já nos lugares que lhes tinham sido determinados, o Paulo, braços caídos, abana a cabeça e diz, não sou capaz, vou enganar-me. Dolores, linda e vistosa no colorido dos folhos e na flor vermelha refulgindo no cabelo louro, sacudiu-lhe os braços em fúria. Disse-lhe, vais dançar comigo e se te enganas apanhas um par de estalos no meio do salão. Silencioso, tímido no rodopiar, Paulo seguiu, todavia, o evoluir de Dolores. Não se enganou.

Depois de um breve instante, o sorriso surgiu, aberto, no rosto do Paulo. E o abraço que faltava acompanhou a memória desses dias de divertimento. No ar, conseguimos ouvir os acordes da amizade rodopiando ao som dos passos da valsa.

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