30.8.04

Arrumações

É como se o mundo exterior não existisse neste dia. Apenas ecos de pessoas, emoções, imagens, enchem a casa ao domingo. É o dia da semana que melhor se ajusta à tarefa das arrumações. E, no entanto, com dupla valência, a de retirar objectos de caixas, armários, gavetas e arrumá-los de novo, reordená-los, transportá-los até para outros espaços. É como uma revisitação interior.
Superficiais, por vezes, inexistentes em muitos domingos mas densas quando se trata de grandes arrumações de finais de estação. Têm aquele sabor de redescoberta de rostos, texturas e cores adormecidas durante longos meses, anos. Ganham um brilho novo, diferente significado ao serem retirados, desdobrados e sacudidos à luz de um olhar que já se imbuíu de novas tonalidades pelo devir do tempo.
E é aquele cobertor, fofinho e macio que nos aqueceu momentos de tranquilidade, é o postal de um local qualquer, cheio de palavras esmaecidas mas de que não podemos desligar-nos, é o livrinho de apontamentos quotidianos de um tempo que já nos faz sorrir, é o lenço de bordado fino, tecido com risos de criança, é o pequeno frasco de perfume que guarda ainda o aroma da adolescência, enfim, são as memórias de tanta coisa acompanhando a escadinha que descemos ao longo da vida.
Ontem foi assim. A casa abrigou-se do exterior, flutuou no tempo e encheu-se de vozes e passos, há muito esquecidos.

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