24.8.04

Leituras de Verão


Só lhe quero dizer isto: guardei os originais dos filmes e diverti-me a transformar as cópias. Cortei, colei, mudei - ela era a estrela, a personagem. E eu o realizador, o cameramen, o produtor, o público - ambos tínhamos todos os papéis.
É fantástico o que se pode fazer com o celulóide, descobri: o tempo andava para diante e para trás, aqui era ontem e depois anos antes, quando a conheci, aqui ela andava de bicicleta, nadava no mar, vinha a correr ao meu encontro, com um pequeno gesto eu fazia a bicicleta andar para trás ou parava-a de repente, ou repetia até ao infinito a sequência em que ela corria ao meu encontro - ela nunca acabaria de correr ao meu encontro, se eu quisesse.
Foi assim que descobri como a gente tem poder sobre as coisas, manipulando-as, deve ser assim que se fazem os filmes verdadeiros e os livros, os livros são uma espécie de filmes, a senhora não acha, só que têm ainda mais poder, porque desde sempre houve palavras mágicas.
E aí é que eu vi a diferença entre saber fazer e não saber, eu manipulava os filmes e as coisas aconteciam ao contrário, a bicicleta corria para trás, mas nada do que eu fizesse podia trazer aquela mulher de volta.

[ Teolinda Gersão, "A dedicatória" in Histórias de Ver e Andar ]


Entre aromas de infância, encantos de maresia e sabores de memórias distantes, fiz espaço, como é meu hábito, para as leituras de férias. Aos poucos, as histórias iam-se construíndo em pausas ensolaradas, repousos frescos na penumbra da casa ou, até, nas noites em que a luz estrelada avivava o gosto de ficar desperta.
Teolinda Gersão é uma das escritoras que me delicia. O primeiro contacto foi, O Silêncio. Os vários tipos de silêncios que nos rodeiam, o mais inquietante aquele que envolve cada um de nós, inacessível ao outro, por muito que se ame, conheça ou se caminhe lado a lado. Cativou-me e, desde aí, rendi-me à sua escrita. Este Verão, para completar outras obras já conhecidas, Os Anjos, Os Teclados, li A Árvore das Palavras e Histórias de Ver e Andar. Neste momento releio Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo. Dele não posso falar ainda. São páginas onde vagueia, quase explode, o sentimento de perda.
Além de Teolinda, li Agualusa, O Vendedor de Passados. E dele, apenas conhecia as suas mãos, de dedos longos, acariciantes. Como as suas palavras.

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