22.8.04

Lua mentirosa


[S. Botticelli, The Birth of Venus ]

O domingo escoa-se. O cheiro de ervas aromáticas esgueira-se pelas portas e toma conta do silêncio da casa. Na penumbra, a frescura de lençóis acabados de mudar acolhe pensamentos e a transparência da janela deixa perceber luzes que se acendem, lá fora.
Sinto a obliquidade do olhar de Vénus, de Botticelli, a sua doçura derrama-se, desagrega-se da capa brilhante do livro e agarra-se às sombras espalhadas pelo quarto. Não longe, o cache-pot redondo, de vidro negro, reflecte movimentos indistintos, esquecidos no tempo. Contrasta, em colorido, com o rectângulo branco do postal, dividido ao meio pelo desenho de uma caneta de aparo, vermelha, pedindo lembranças na frase traçada a tinta don’t forget to write. O cavalinho de madeira, saído de um qualquer carrocel, faz que saltita apoiado no poste dourado. Até o Cristo que Rosa Ramalho modelou em barro, descansa sem sobressalto.
No céu, a lua ri-se, enganadora. Desenhando a letra oposta, diz que se vai, que se despede, mas vai ficando. É mentirosa, a lua.

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