"Oh, minha amora madura
quem foi que te amadurou,
foi o sol e a geada
e calor que ela apanhou"
"Avôzinho, que horas são?" e ele sempre respondia, com a determinação sorridente e a certeza da lenga-lenga esperada, "faltam dez réis para um tostão, uma sardinha para um quarteirão e um soldado para um batalhão". Era isso que queríamos ouvir, em fila de palavras certinha, comandada ao som de quem se fizera militar.
Era o avô capitão, de careca contrariada apenas pelo tufo rijo e branquissimo a toda a volta da cabeça. E quando nos dizia, com ar circunspecto, tenho de cortar o cabelo, olhávamos, com espanto, o deserto rosado e macio, ressumando a perfume de cravo, que se anunciava mesmo antes do seu aparecimento nos espaços estivais à beira mar.
Amanhecia com as ultimas estrelas apagando-se no céu, embrenhava-se no meio dos vinhedos e figueiras, colhendo os frutos ainda frescos de orvalho. Mas a grande façanha da fruta, era realizada quando o calor se esbatia na ternura branda do final do dia. A colheita das amoras. Vestia uma velha bata, partilhando as risadas divertidas de todos nós, e de tesoura em punho encaminhava-se para a grande amoreira, seguido por um séquito irrequieto de netada. A que não faltava a avó, com o seu sorriso travesso. Claro, que no regresso a casa, apenas a poucos metros, saltitavam as amoras na grande tijela e as nódoas escuras espalhadas na roupa, nas mãos e, na careca, misturava-se o travo arroxeado e doce com o perfume forte de cravo.
A velha amoreira permanece, esquecida, em elevação coberta de relva, deserdada de memórias para quem a deixa ainda recolher as estações e espreguiçar os ramos tocando os sonhos de outrora, esses, pertença de momentos impossíveis no presente. Mas, quando lhe passo perto, soltam-se os sons dos nossos risos de criança e a voz do avô na lenga-lenga encantada da infância.
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