19.10.04

dona zézinha


...e o lastro das memórias soltou aromas de maçã e canela e acordou os nossos sonhos de criança. O Verão era um espaço mágico. Nas dunas, junto à ria, habitávamos os castelos que a nossa fantasia construía, recolhendo a ponte levadiça que nos isolava do mundo dos adultos. E o tempo pertencia-nos. As manhãs escoavam-se entre azuis luminosos de céu e mar então, cansados e descalços, fazíamos o caminho de regresso pelo areal extenso na distância que se deixava percorrer, carregando o sabor da maresia nas pegadas de areia que espalhávamos pela casa. Lá dentro, resmungando uns amuos de quem defende território, Dona Zézinha, acertava o lenço na cabeça em sinal de aprumo e, acalmada a algazarra, a modorra do calor quebrava a resistência e a casa retomava a paz anterior.
Todos os Verões, ajeitada a faina caseira, Dona Zézinha ancorava em nossa casa. Mulher de pescador, ao jeito paciente que lhe vinha do quotidiano árido, acrescia o ar risonho que nos fazia repetir o seu nome constantemente. Saboreávamos as histórias engraçadas que sempre acompanhavam o início do dia, imaginando o pobre gato siamês ensaboado à exaustão para lhe retirar as manchas ou o "sorvete" que comprara e guardara na mala para levar à noite, aos filhos. Mas, o que mais nos divertia era o desencontro dos sabores. Perante a fúria do meu pai e o olhar benevolente da minha mãe, os nossos risos sufocados redimiam os esquecimentos, a troca do açúcar pelo sal ou o alecrim pelo cravinho da Índia. No Inverno, recortava retalhinhos de memórias, que cosia em espirais de ânsias pelo convívio estival e nos oferecia desdobrados em pequenas mantas coloridas. Ainda existem lá em casa...
"Este é o melhor tempo da minha vida", costumava dizer e nesta frase imensa se teciam os laços dos afectos que nos ligaram durante tantos anos. Assim como o seu bolo de maçã, acariciado pelo aroma da canela, enchia as nossas mãos gulosas de ternura. Ainda hoje, no silêncio da casa se forma aquele "corredor de tempo", onde ecoam os risos da infância e a tagarelice da Dona Zézinha.
Nota: este texto foi escrito por mim para o blog Professorices a pedido de JVC e publicado, em 6 de Junho. Recupero-o agora, no cantinho da autora.

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