1.11.04

mestre Samuel


...e a cumplicidade do mar sempre presente nas nossas brincadeiras infantis. Mesmo defronte da casa, a "baía", recanto da praia entre rochedos, era o ponto de partida para tantas viagens imaginadas nos barquinhos coloridos que lançávamos à babugem das ondas.
Mas havia o Argus. Branco, enlaçado por vivo pintado a negro, nome orgulhosamente desenhado, saltava na cresta das vagas pela mão segura de Mestre Samuel, rosto tisnado pelo sol tantas as horas embaladas no mar e corpo curvado no jeito de lançar as "mourejonas" e de "safar" as linhas e os anzóis dos "açafates".
Quando o mar se revolvia de fúria e o barco descansava em terra, Mestre Samuel, animado pelo conforto de uns dedinhos de vinho, encostava a sua voz ao postigo da porta e entoava risos e quadras que nos deliciavam. A companheira, "olhos de gata" como ele dizia, acenava a cabeça em reprovação muda que mais não era que a ternura envergonhada. A secagem das amêndoas e dos figos era o seu trabalho, armava o "almanxar" em círculo, onde estendia as esteiras recolhidas à tardinha negando aos frutos a carícia do "sereno".
Mestre Samuel corria pela praia atrás de nós para nos lançar na água e nós, em susto e gargalhada, lá mergulhávamos. O mar, que tanto amava, ajeitava o baptismo da sua mão segura envolvendo o nosso corpo em golfadas saborosas de sal e espuma. Assim aprendemos a nadar e a amar esse espaço imenso mas cuidando, quando de súbito se levantava a brisa de "mar de fora" Tranquilo, era quando apresentava mais perigos, como no poema de Vinicius, e era tempo de fugir. E ensinou-nos a magia dos números nos dias de "levante", eram sete as ondas e só depois o mar permitiria o nosso abraço, devolvendo-nos à areia em jogos harmonizados.
Em transparências cristalinas, ficaram as memórias de caprichos infantis nas conchas que Mestre Samuel recolhia e me trazia embrulhadas num sorriso.
Olhando na distância, imagino que o barquinho ao longe, embalado pelo mar, é Mestre Samuel sonhando antes de nos vir apanhar no areal.
* texto escrito para o Professorices e agora recuperado pela autora

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