Só existem sombras onde há luz, ruído onde havia silêncios e os desassossegos, na sua grande maioria, são fecundos. Face ao exposto, o quadro parece-me magnífico. :D
E, quando já idealizámos, sob a materialidade e animação de um objecto, o que não está lá, tornando-se um cristal em cangalhos, apenas. E, quando se aparta de nós essa esfera ideal debaixo de um corpo concreto que alimentámos, não é um morto que acode? E depois um fantasma, um fantasma que quer existir? E existir junto de nós. E, para ser aqui, tem de mudar o seu estado e natureza, afeiçoar-se a um perfil existencial: necessitará primeiro de uma sombra. Depois, quem o tolde, dando-lhe um carácter, um timbre, uma forma, ainda que difusa, em acordo com uma matriz, um modelo, uma ideia: é esse que nos acaricia à noite. O vulto que nos sussurra no alvor. Em busca do seu corpo. Restolho. Refaz-se a mudança: o amor das sombras é uma forma de amor. O desgosto do corpo. Porquanto amamos agora o distante mais do que o próximo, porque este se declara no sobressalto do pardo, acariciando quando baqueia no escuro profundo. Fina-se até ao estilhaço de um eco unicamente, instante de uma reminiscência, uma inspiração… ou respiração. E não pode ser um delírio, senão isso, um frémito nas trevas, aparição por nomear. Um silêncio, afinal: já não ouço, excepto ecos-memórias de antanho. O morto morreu mesmo. Quem me dera escutar e perceber esses ruídos que declaras. Atender a insinuação de comparências reanimadoras, que podem refundar o que resta de todos os amores que outrora na consequência e fruteza moram na tibieza dos dias, pendentes dos seus acordes e passos estugados, na insistência de afrouxarem a duração, reterem os corpos e os embuços que simulam o que já foi, não logrando reinventar o vindouro, porque, como cansados no barulho da ajuntada da turba, estão sós. Sombras. Expectantes ainda de avatares que tornam o mesmo no diferente e o diferente no que era. Por isso, todos hão-de ir ver o seu próprio espectáculo, num espelho que devolve sombras e corpos mutilados. À noite, enquanto dormem. Sombras. Silhuetas. Desta guisa, nunca estamos radicalmente sós. Virtualizamos.
“Remorso por qualquer morte”
Já livre da memória e da esperança, quase futuro, ilimitado, abstracto, não é um morto, o morto: ele é a morte. (…) o morto ubiquamente alheio é só a perdição e ausência do mundo. Roubamos-lhe tudo, não lhe deixamos nem uma cor nem uma sílaba: é este o pátio que os seus olhos já não partilham e aquele o passeio onde perscrutou a sua esperança. Até o que pensamos ele poderia pensar; repartimos por nós como ladrões todo o caudal das noites e dos dias.”
We play at paste, Till qualified for pearl, Then drop the paste, And deem ourself a fool. The shapes, though, were similar, And our new hands Learned gem-tactics Practising sands.
25 comentários:
mas as sombras são a alma em movimentos ...perdidos ... no cinzento ...dos espaços.
Lindo.
Ocorre-me Emily Dickinson,
The show is not the show,
But they that go.
Menagerie to me,
My neighbor be.
Fair play -
Both went to see.
Numa noite de luar...
E os desassossegos não serão os nossos medos arrumados no silêncio?
assossegando-te, portanto...*
Só existem sombras onde há luz, ruído onde havia silêncios e os desassossegos, na sua grande maioria, são fecundos. Face ao exposto, o quadro parece-me magnífico. :D
As sombras são fruto da luz. Logo, o quadro parece-me perfeito.
Beijinhos, Moriana
E, quando já idealizámos, sob a materialidade e animação de um objecto, o que não está lá, tornando-se um cristal em cangalhos, apenas. E, quando se aparta de nós essa esfera ideal debaixo de um corpo concreto que alimentámos, não é um morto que acode? E depois um fantasma, um fantasma que quer existir? E existir junto de nós. E, para ser aqui, tem de mudar o seu estado e natureza, afeiçoar-se a um perfil existencial: necessitará primeiro de uma sombra. Depois, quem o tolde, dando-lhe um carácter, um timbre, uma forma, ainda que difusa, em acordo com uma matriz, um modelo, uma ideia: é esse que nos acaricia à noite. O vulto que nos sussurra no alvor. Em busca do seu corpo. Restolho. Refaz-se a mudança: o amor das sombras é uma forma de amor. O desgosto do corpo. Porquanto amamos agora o distante mais do que o próximo, porque este se declara no sobressalto do pardo, acariciando quando baqueia no escuro profundo. Fina-se até ao estilhaço de um eco unicamente, instante de uma reminiscência, uma inspiração… ou respiração. E não pode ser um delírio, senão isso, um frémito nas trevas, aparição por nomear. Um silêncio, afinal: já não ouço, excepto ecos-memórias de antanho. O morto morreu mesmo.
Quem me dera escutar e perceber esses ruídos que declaras. Atender a insinuação de comparências reanimadoras, que podem refundar o que resta de todos os amores que outrora na consequência e fruteza moram na tibieza dos dias, pendentes dos seus acordes e passos estugados, na insistência de afrouxarem a duração, reterem os corpos e os embuços que simulam o que já foi, não logrando reinventar o vindouro, porque, como cansados no barulho da ajuntada da turba, estão sós. Sombras. Expectantes ainda de avatares que tornam o mesmo no diferente e o diferente no que era.
Por isso, todos hão-de ir ver o seu próprio espectáculo, num espelho que devolve sombras e corpos mutilados. À noite, enquanto dormem.
Sombras. Silhuetas. Desta guisa, nunca estamos radicalmente sós. Virtualizamos.
“Remorso por qualquer morte”
Já livre da memória e da esperança, quase futuro, ilimitado, abstracto, não é um morto, o morto: ele é a morte. (…) o morto ubiquamente alheio é só a perdição e ausência do mundo. Roubamos-lhe tudo, não lhe deixamos nem uma cor nem uma sílaba: é este o pátio que os seus olhos já não partilham e aquele o passeio onde perscrutou a sua esperança. Até o que pensamos ele poderia pensar; repartimos por nós como ladrões todo o caudal das noites e dos dias.”
Jorge Luís Borges.
mateso
as sombras podem ser protectoras. mas podem ser, também, perturbadoras, motivo de instabilidade...
:)
We play at paste,
Till qualified for pearl,
Then drop the paste,
And deem ourself a fool.
The shapes, though, were similar,
And our new hands
Learned gem-tactics
Practising sands.
E.D.
Jim, numa noite d eluar aparecem todas as angústias e não se divisam as estrelas...
beijo.
cristina, talvez, em gavetinhas cor-de-rosa :)
inês, por vezes, às vezes :)
nameless as a desire
concordo. mas...o silêncio, não pode, ele mesmo, ser um ruído?
unicus, interessante:
sombras e luz...
de quadros também falas...
a perfeição não existe.
Sim, sem dúvida... quando nos oprime, quando nos inquieta, é ensurdecedor.
nando, de novo,
estamos sós, com as sombras. com os desassossegos.
experimenta 'ouvir-te', haverá ruído.
as sombras que conhecemos são reconfortantes e cheias de segredos, as outras são inquietantes.
Um beijinho
Sombras que nos despertam... que nos acordam e nos perseguem...
Memórias... de um viver
laerce
tememos o que não conhecemos? será?...
beijinhos.
Claudia, olá, faz tempo:)
sombras que nos acolhem, sobretudo neste calor que já soa.
lindíssimo!
ana:) obrigada pela gentileza.
volta sempre.
As sombras têm tendência p'ra conseguir criar grandes confusões!
;) Baci
sophia, mas revelam o que o dia nos encandeia o olhar;)
bjs.
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