31.10.04

parfait d'amour



Em algum canto esquecido da memória a havia guardado. De gargalo fino, descia em formas levemente estriadas, retendo partículas de sonhos. Agitei o líquido azul violeta, e transportei-me a um ponto qualquer do universo, cobrindo-me de estrelas, em pensamentos derramados pelo chão. E os olhos habituavam-se ao silêncio das vozes. Ao longe, ouvia-se apenas o som de luzes esmorecidas, apagadas em sopros de infinito.
Enrolei a imagem. Em algum canto esquecido.

29.10.04

ausência - presença


(V. Vasarely, Tridem K )

Ausência de mim.
Presença de um sentir em palavras desenhadas.
Ausência de ti.
Presença de um sentir em manchas de aguarelas.

Numa tela, indelével, translúcida, desenhamos pensamentos, olhares.
Cheios de um sentir ausente, apenas delineado no traço de tinta esbatida, em contraste de folha pálida.
São belos, porque impossíveis. Serenos, porque de palpitante desassossego.
Mas o colorido transgride o desenho, certinho, cuidado. Derrama-se em vitrais de reflexos.
E a ausência já não me habita. Encheu-se do teu sentir.

28.10.04

(o) momento



O momento. Não sei explicá-lo. Não o compreendo. Aceito-o.
Mas momento, é espera. Sem antes nem depois, Paragem no tempo. Indefinição.
O momento não se encontra, não se procura. Surge. O momento.

Desço a escadaria, passo rente ao velho tanque mariano. Nos degraus, pavões descobrem azuis em verdes jaldelinos, pontuando manchas brancas de cisnes no brilho turvo da água.
Abrigada nas copas dos cedros, imprimo um súbito impulso aos leques, desdobrando coloridos rubros e ondulo no movimento da serpente. Imagino-me em luta com a garça, em jogo de entrega e repúdio.
O olhar perde-se no infinito. Gotas de chuva transparecem tonalidades douradas. Alongo os leques, o meu corpo evola-se, não o sinto. Por um momento, sonho-me borboleta-flor. Irrequieta. Tentadora.

Momento. Não o momento.

27.10.04

ilhas



As pontes de Veneza unem palácios. Como ilhas. Onde se escondem tesouros e se guarda o silêncio. E o sol brilha nas pontes de Veneza.

Vagueio nos espaços, preencho vazios de claustros e jardins, encho-os de reflexos que recolho nas pedras bizantinas. Rasgadas, cindidas por colunas geminadas, as janelas dos palácios. Por onde vislumbro outras janelas. Que não se tocam.

Apenas o ar, leve, aromático, em espirais sonhadas, unem as margens dos canais. E as amarras soltam gôndolas, deslizando, levando pensamentos e desejos que não se cruzam, antes se afastam paralelos aos cais. Da janela onde me encontro, recolho escadas negando encontros, recusando sombras de histórias já contadas.

Não atravesso as pontes de Veneza. Nelas, solto o amor e a paixão que se esvai do olhar, do sentir conjugado de outro olhar, reunidos em horizonte longínquo, colorido. E as janelas, recolhem o sereno quando a noite dos sentidos se aquieta sob as pontes.

Porque os palácios são como ilhas, não se encontram. Só o sol dança nas pontes de Veneza.

26.10.04

mulher-menina



Fico olhando as palavras. Decifro imagens sentindo o desejo de ir mais longe. De espreitar por detrás de cada signo, acariciando, cores, sombras, traços. Como uma dança sedutora, sou por elas arrastada, em rodopio que não domino, em vertigem de linguagem, estonteada pelo sabor perfumado de cada som, pela harmonia saltitante de cada ponto. Em convite, os espaços contidos em reticências hesitantes, são apenas histórias a preto e branco esperando coloridos de mãos apaixonadas.

E em brincadeiras de menina, travessa, azougada, retiro do meu saco de magias, frases enlaçadas, dando-se as mãos, inseparáveis como aquelas figurinhas rasgadas em papéis brilhantes que me deslumbravam em criança. Coloco-as na linha de visão, reconhecendo sentimentos, emoções, afectos. E não sou mais a menina.

O olhar de mulher, recolhe promessas, paixões, em frases desnudadas, acolhidas no olhar cansado, sonhador, de um contador de histórias descoloridas pela solidão e pela ânsia imensa de ternura. Personagem recolhido no meu sonho desse mundo de mulher, revelado em sorrisos de silêncio, entretecido em textos deslumbrados.
E assim, fico olhando as palavras...

25.10.04

ânfora



No palácio do rei de Cnossos fora colocada uma ânfora como símbolo de perfeição.

A luz penetra na pequena sala em busca dos tons rosados dos barros. Sente-se a aragem exterior, reflexo de uma outra beleza, mutável, disposta em frágeis coloridos, realizada unicamente na transparência da luz.
A unidade que a ânfora protagoniza, não é mais que a busca para lá das aparências.
Que verdade procuro, que sentido oculto se esconde em todas as coisas que me rodeiam...
Uma supra-realidade em que sonho e realidade, estados tão contraditórios, se fundem e combinam...


Se quiseres que uma árvore viva,
Projecta em torno dela este espaço interior
Que reside em ti...
Pois só quando toma forma
Na tua renúncia é que ela realmente se torna árvore

(Rainer Maria Rilke)

24.10.04

para além do monte da lua



Encontrei um sonho. Senti-o respirar junto ao peito. Com cuidado, fiz das minhas mãos rendilhados de luar e toquei-lhe. Ao de leve. Então, desatei laços de ternura e recolhi nele afectos retirados da alma.
A aragem da noite balançou suavemente e o sonho, deixou-se embalar nas sombras. Sem me dizer adeus, levou consigo sorrisos e promessas.
Abro a janela, deixo entrar o luar mas o sonho, saudoso de ti, prendeu-se-te ao olhar e não voltou.
O sonho que me emprestaste. O sonho que te roubei.

23.10.04

cantando

You Don't Know Me
Ray Charles

You give your hand to me
And then you say hello

I can hardly speak
My heart is beating so
And anyone can tell
You think you know me well
But you don't know me


Oh you don't know the one
That thinks of you at night
Who longs to kiss your lips
And yearns to squeeze you tight
No I'm just a friend
That's all I've ever been
You just don't know me


I never knew the art of making love
Though my heart aches with love for you
Afraid and shy, I let my chance go by
The chance that you might love me too


You give your hand to me
And then you say goodbye
I watch you walk away
Beside the lucky guy
You'll never, never know
The one who loves you so
You just don't know me


I never knew the art of making love
Though my heart aches with love for you
Afraid and shy, I let my chance go by
The chance that you might love me too


You give your hand to me
And then you say goodbye
I watch you walk away
Beside the lucky guy
Who'll never, never know
The one who loves you so
You just don't know me


You'll never, ever know
mmmm, cause you just don't know me


Há canções que se nos colam ao ouvido e as trauteamos ao longo do dia. Hoje foi esta a eleita.

22.10.04

sinais


Há sinais escritos nas pedras. Desenhados por fino silex, como os que tenho nas mãos. Recolho-as ainda em brilhos de maresia, o ar torna-as baças, altera-lhes as cores. Como os corais, em ilhas de solidão. Nas águas claras e quentes de um oceano onde se movem reflexos vários.
A areia deixa-se sulcar pelos passos. Rastos fundos que a água enche em ondulações de espuma, alisados pela força da corrente. Nada permanece na superfície escorregadia, nem o vai-vem das ondas.
Junto pensamentos em palavras inaudíveis, impenetráveis de sentido. Nem os oiço, no ruído imenso dos silêncios despertos na aragem dos sentidos. E o olhar vagueia, perturba o sossego, sem se fixar em lugar nenhum. Apenas o cheiro forte das algas, abarca a claridade do dia, perdida já no luco-fusco da proximidade da noite.
O grito súbito de um pássaro cruza a quietude do momento. A sombra do seu voo rasga o espaço que me rodeia e no qual me defendo. Estremeço. Recolho os fragmentos em ideias dispersas e faço o percurso inverso.

21.10.04

a violeta voltou a florir


Voltou a florir. Quando menos esperava, despontaram de novo. Flores de cor branca com laivo lilás no folho das pétalas.
Há anos que partilhávamos a luz e o sol das três janelas rasgadas na fachada virada ao rio. Longos anos avistando a palmeira, sonhando exotismos longínquos em horizontes fechados.
Roendo a constância dos dias, aninhara-se em mutismo verde de folhagem cobrindo o vaso. E deixou de florir. O meu olhar distraído, seguia o gesto maquinal da rega necessária sem outro cuidado que lhe adicionasse a vontade de despontar, orgulhosa, a sua magnífica floração.
Mais por acrescento de espaço que de atenção merecida, mudei-a do sítio habitual, fugindo ao meu olhar vazio e à sua postura de ostracismo. O antúrio fez-lhe companhia, retirado de um outro esquecimento. Ambos continuam a observar o rio e a palmeira no seu estatismo fiel, mas desviaram-se de um outro estatismo revelado em gestos esquecidos de calor.
O antúrio ganhou novas folhas e a violeta voltou a florir.

20.10.04

one rose a day keeps sorrow away



Parou a chuva, amainou o vento e o sol voltou a sorrir.
Soletrarei as tuas palavras, poeta:

(...) quando tu vens
a solidão cai leve como a flor do lírio "

(Ruy Belo)

definições


Pequenina. É a gota escorrendo da folha molhada, mergulhando tépida na água da chuva.
Pequenina. É a estrela rosada que a espuma desnuda no leito da areia.
Pequenina. É a lua quebrada, desenhada em crescente, promessa de sonhos.
Pequenina. É a pétala frágil, ondulando ao vento, em carícia suave.
Pequenina. É a luz que cintila na réstea do olhar de amores escondidos.
Pequenina. É a voz da ternura ciciando ao ouvido paixões desmedidas
Pequenina. É a mão que se estende, trémula de desejo ao encontro de outra
Pequenina. É a boca abandonada ao beijo afogueado de lábios famintos
Pequenina. É a distância que os corpos percorrem em ânsia de posse
Pequenina. É a vontade de partir quando o afecto pede para ficar.

Pequenina, se o fosse, seria a ternura de um nome chamado em silêncio de cores.

19.10.04

dona zézinha


...e o lastro das memórias soltou aromas de maçã e canela e acordou os nossos sonhos de criança. O Verão era um espaço mágico. Nas dunas, junto à ria, habitávamos os castelos que a nossa fantasia construía, recolhendo a ponte levadiça que nos isolava do mundo dos adultos. E o tempo pertencia-nos. As manhãs escoavam-se entre azuis luminosos de céu e mar então, cansados e descalços, fazíamos o caminho de regresso pelo areal extenso na distância que se deixava percorrer, carregando o sabor da maresia nas pegadas de areia que espalhávamos pela casa. Lá dentro, resmungando uns amuos de quem defende território, Dona Zézinha, acertava o lenço na cabeça em sinal de aprumo e, acalmada a algazarra, a modorra do calor quebrava a resistência e a casa retomava a paz anterior.
Todos os Verões, ajeitada a faina caseira, Dona Zézinha ancorava em nossa casa. Mulher de pescador, ao jeito paciente que lhe vinha do quotidiano árido, acrescia o ar risonho que nos fazia repetir o seu nome constantemente. Saboreávamos as histórias engraçadas que sempre acompanhavam o início do dia, imaginando o pobre gato siamês ensaboado à exaustão para lhe retirar as manchas ou o "sorvete" que comprara e guardara na mala para levar à noite, aos filhos. Mas, o que mais nos divertia era o desencontro dos sabores. Perante a fúria do meu pai e o olhar benevolente da minha mãe, os nossos risos sufocados redimiam os esquecimentos, a troca do açúcar pelo sal ou o alecrim pelo cravinho da Índia. No Inverno, recortava retalhinhos de memórias, que cosia em espirais de ânsias pelo convívio estival e nos oferecia desdobrados em pequenas mantas coloridas. Ainda existem lá em casa...
"Este é o melhor tempo da minha vida", costumava dizer e nesta frase imensa se teciam os laços dos afectos que nos ligaram durante tantos anos. Assim como o seu bolo de maçã, acariciado pelo aroma da canela, enchia as nossas mãos gulosas de ternura. Ainda hoje, no silêncio da casa se forma aquele "corredor de tempo", onde ecoam os risos da infância e a tagarelice da Dona Zézinha.
Nota: este texto foi escrito por mim para o blog Professorices a pedido de JVC e publicado, em 6 de Junho. Recupero-o agora, no cantinho da autora.

18.10.04

traçados


Alinhei-os ao acaso. Não segui tonalidades nem aproximei tamanhos. Cingi-os no pote de vidro negro, redondo, em jeito de molho florido, pontas desafiadoras e prontas a traçar linhas.

O olhar lânguido sobre a folha, esperava ver surgir traços, círculos, triângulos, construindo espaços no espaço. Queria-a suspensa, não sobre a cascata, mas sobre os sonhos que trago na alma, rasgada em transparências, jogando brilhos em tessituras densas, escondidas em recantos adormecidos. Mas as esquadrias teimavam em não se desenhar, e essas geometrias imateriais, imaginadas em flutuações sobre a paisagem, permaneciam presas nas pontas coloridas dos lápis.
Em vão o olhar tentou quebrar o estatismo, desmultiplicando superfícies e emprestando ambiências de plasticidade visual em notas coloridas. Mas a dinâmica do meu espaço interior não conseguiu romper as contenções murárias da folha de papel.

As minhas mãos não têm jeito. A casa não surgiu. Não fui capaz de a construir.

17.10.04

colorações


( tuscan landscape 1)

Sentimento a sépia. Retirado de um mundo longínquo, olhado em espelho retrovisor à medida que a estrada avança. Nessa base assentam todos os outros, aqueles a preto e branco retirados da memória e coloridos pelo olhar dos dias.

Mas prefiro tonalidades fortes. As decisões marcantes não podem conter colorações pálidas, essas pertencem à harmonia, aos sons que se desejam difusos, espreitando apenas os sentimentos suaves. É como observar as tempestades, o mar revolto, ensombrado por céu de chumbo. E o coração pula-nos entre o verde esmeralda e os azuis escuros dos sentidos inquietos.

Sentimento a sépia. Chama ondulante, caminhando em campo ardente de seara aconchegada pelo vento, tendo ao fundo mistério de sombras, desejadas por desconhecidas, em caminhar de espanto e de receio. E o coração acelera, em revelações de filme colorido, exibindo personagens, desnudando gestos, descobrindo brilhos que já não seguram o olhar. E ele oscila, vagueia, arde, perde-se nessa coloração sépia que, subitamente, invade o sentimento.

16.10.04

coração


(Silva, Tender Kiss )

Eu estava só naquela tarde e tu vieste
de dentro povoar-me de cidade o coração
prometido para o lugar
onde costumamos deixar as palavras
Tinham posto de novo fitas nas árvores
reuniram-se os corpos e as vozes
para todos sentirem
pontualmente a alegria
E tu pousaste então ó meu pássaro naquele coração
cingido no meio da cidade
.

(Ruy Belo)

Quando se calam as palavras, os silêncios enchem os espaços.

15.10.04

labirintos


Os labirintos. De palavras procurando palavras, desencontrando-se delas. Como se os signos, desligados , isolados, emudecessem ao som harmónico da junção conjugada e libertando-se da cadeia, caminhassem em sombras de sentidos destruídos.

Percorro um labirinto onde o sol corre célere no campo da memória, apaga claridades e se despede em frestas do olhar. E sigo, afastando qualquer réstea luarenta de uma noite vertiginosa caindo-me sobre os ombros, procurando fundir-me nas palavras que me atravessam o caminho. Agarro-as ou agarram-me e juntas rasgamos espaços onde riscamos imagens, impregnadas de contornos suspensos da ausência de sentidos.

14.10.04

geometrias e cores


[ Muller 2]

Os quadrados sem cores.
As cores dos quadrados.
Os quadrados e as cores.
As cores que identificam os quadrados.
Os quadrados preenchem as cores.
As cores emprestam cor aos quadrados.
Os quadrados acolhem as cores.
As cores encostadas aos quadrados.
Os quadrados sacodem as cores.
As cores invadem os quadrados.
Os quadrados deixam-se preencher pelas cores.
As cores conquistam os quadrados.
Os quadrados aceitam as cores.

Tudo é luta. Tudo se conquista. Nada se possui.

13.10.04

Amor e Psiche


[Antonio Canova, Psiche rianimata dal bacio di amore ]

Hoje, o sol brilhou em tons laranja no jardim encantado. Amor e Psiche correram sobre a relva, ensaiaram dança de amor por entre as oliveiras, pairaram sobre a espuma do dia que se abria. E o riso preencheu o espaço, caindo cristalino nos olhos de Psiche. Amor, carinhoso, em gestos de paixão enlaçou-a e ofereceu-lhe o beijo apaziguador.
Psiche e Amor, a eternidade num momento.

12.10.04

o cipreste


(Cherikov, Lavendelfeld mit Baum )

Chamo-lhe o cipreste. Alto, de porte fino, cabelo branco, levemente comprido, acena na curva do passeio, como se a aragem fizesse dançar o seu corpo de árvore solitária. Sempre à mesma hora, a volta das seis da tarde encontra-o numa avenida do Restelo, parecendo esperar não sei o quê, vindo não sei de onde. Por vezes agita as mãos, como se saudasse alguém que só ele apercebe, em imagens adormecidas na memória e reencontradas no vazio do olhar, perdido em distâncias impossíveis de seguir. O rosto afilado, escondido por óculos escuros, não deixa entrever a expressão dos olhos.
Hoje, algo me fez virar a cabeça depois de cruzar a sua figura pousada em silenciosa espera, no lancil do passeio. Invocando qualquer deus da sua devoção interior, desenhou uma cruz com a mão direita, regressando logo a seguir, à posição de vigia de um horizonte longínquo.
Não me lembro de ter falhado o encontro um dia sequer. E fico ansiosa se não o distingo logo, assim que a estrada se alarga. Invade-me o mistério desta presença desconhecida, sofrida em alguma encruzilhada da vida.
Quase reconheço o medo de um dia não o encontrar, agitando a folhagem na aragem dos caminhos, acenando estranhos gestos a sombras imaginárias.
E quase reconheço, também, o receio de um dia descobrir os segredos que esconde a sua figura de cipreste solitário.

11.10.04

a casa


Como se o tempo parasse. Naquele preciso momento em que pisou a soleira da porta e o mundo se abriu de cores e sons oferecido.
O dia amanhecera parco de nuvens, apenas anunciado de um tom pardo ensombrando os amarelos clareados pelo sol. No balanço do riso, encolhido ainda pela incerteza, as palavras corriam velozes querendo abraçar o espaço que se encurtava nos quilómetros percorridos. Na frescura da pele, tocada apenas pelo ar matutino, sentia o olhar crestado de sentimento em assombros de adolescente esperando o primeiro baile. E o Tejo, esse rio cúmplice de tantos carinhos, mais não fazia que aconchegar a estrada por onde corriam outras ternuras, feitas de esperas e de ansiedades. E o sol aquecia, tornava vivo o desejo de chegar.
E por fim, a casa. Brancura de paredes escorreitas, espreitadas por portadas azuis, protegidas pela sombra da árvore em jeito de convite. E a cadeira, vazia, esperando o afecto que iria encher o espaço, ansioso ele também pela vida que surgia no seu olhar.
E entrou. No final do arco-íris, todos as cores e sons se abriram nesse mundo oferecido.

10.10.04

no coffee, no workee


O dia só começa verdadeiramente no momento em que o aroma do café exala aquela nuvenzinha perfumada, insinuante, dançando à nossa volta, arrancando-nos à dormência do despertar.
Vamos tomar um café? A chávena do café. À sua volta reúnem-se as emoções mais contraditórias. Fazem-se confidências, decidem-se negócios, combinam-se estratégias, cria-se o convívio saudável de tertúlias, partilham-se gostos e preferências.
E descobrem-se amizades, alimentam-se afectos. O forte aroma do café, é, muitas vezes, ponto de partida para a descoberta de muitos outros aromas.
Preciso de um café, logo pela manhã. É o meu vício declarado, assumido, que nada me deixa fazer sem essa caneca fumegante, amarela e branca, desafiadora no aviso "bica escaldada de água fria tem medo". Olha-me e atrai-me. E pego-lhe com carinho, ajeito as minhas mãos ao arredondado do seu corpo, levo-a aos lábios, sentindo o calor que me entra na pele espandir-se em ondas, fazendo-me estremecer de prazer. Adoçicado, mas não a ponto de lhe perder o gosto natural, o café faz parte do meu dia a dia, equilibra-me, preenche a ausência perdida em qualquer ponto do caminho, reencontra o olhar largado por sobre a cidade.

9.10.04

caminhos


(foto de Francisco Botelho)

Não sei se estes caminhos serão algum dia os meus, mas num ponto qualquer nos encontrámos, em outra hora, em outro tempo. E ao ver-te, percorrendo esta senda com o olhar, lembro o poeta,
(...)
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono...

(Ruy Belo)

8.10.04

chá de jasmim


Como gosto de chá! Quente, gelado, com limão. Mas sem açúcar. Saborear os aromas, de flores, frutos, folhas perfumadas, com o toque agri-doce da infusão dos sentidos.
Mas lembro-me de um chá, chinês, de raízes estranhas e sabor amargo que um dia me ofereceram.
Nessa época, o trabalho pedia-me a presença presa a uma pequena secretária, controlando a imprensa estrangeira e dando-lhe apoio. Durante três dias, desde as 8:00 da manhã até noite adiantada, o meu círculo de movimentos mantinha-se em rota restrita. E, desde o primeiro dia, uma figura silenciosa, discreta, cumprimentava-me com um sorriso cheio de mistério oriental. Passava junto à mesa, recolhia as folhas que entretanto iam surgindo e descia à sala destinada à imprensa. No segundo dia, passou como de costume na sombra disfarçada do sorriso e fez o percurso habitual. A meio da tarde, subiu até ao piso onde me encontrava e dirigiu-se-me num inglês arrevezado. Comentou a dureza do meu trabalho e, num olhar espantado e cheio de pena, desabafou, deve estar muito cansada, está sempre aqui! No último dia, vejo-o aparecer, o sorriso colado na face, segurando com cuidado um embrulho em papel vermelho com laço dourado. Não disse nada, apenas colocou o presente à minha frente. Perante o meu gesto instintivo de recusa, explicou, essa infusão é muito antiga e vai fazer-lhe bem. Desapareceu e não mais o vi. Arrumei o pacote do chá durante muito tempo, sem lhe mexer. Um dia, resolvi prová-lo e...era intragável. Deitei-o fora mas guardei o sorriso misterioso.
E como gosto de chás! O meu preferido é o de jasmim, sorvido em pequenos golos, saboreado na doçura de uma tarde solarenga, frente ao rio. Olhar perdido no movimento do Tejo, sentindo a ventania correr forte no corpo, agitando as águas em sentido contrário à corrente. O meu chá de jasmim. Mantenho ainda o sabor do seu perfume.

7.10.04

I love you more than chocolate

Dizem que tenho o seu sorriso. E o espelho devolve-me os seus traços, eu bem o entendo. E fico feliz.
Procurei na caixa, aquela grande, em que guardo pequenas coisas preciosas que acompanharam o dia-a-dia das suas mãos, dos seus risos lançados em cascata, em ar de desafio pelos sorrisos menos cálidos que a vida soltava. Tantas coisas encontrei, bordadas com o cuidado maternal, incondicionalmente oferecido, de quem se dava por inteiro aos filhos. Retirei o pequeno saco, que o Zé lhe ofereceu, cheio de bonbons gulosos, saboreados na ternura dos gestos mimados que ele sempre tinha e que ela guardou, intacto, o brilho dos olhos preso na frase, que a divertia: I love you more than chocolate.
Porque as outras, as grandes, as que nos estruturaram, guardo-as naquela pequena caixa que nos prende à vida, dentro do peito. E fiquei feliz, por recordar.
Porque hoje farias anos.

6.10.04

conversa de flor


Se eu fosse a ti, colhias-me.
E porque o faria?
Enfeitarias o cabelo, alegrarias o olhar, marcarias este dia que te envolve, perfumarias os teus passos. Seria como observar o sol através de um prisma, distribuindo miríades de tonalidades e nelas, eu seria a lilás, desfeita em mil pétalas de flor aberta, oferecida à tua mão carinhosa. Iríamos juntos, pelas ruas da cidade, escutando em cada canto, em cada esquina, o aroma do Tejo, debruçado em retalhos unidos de maresia. Seguiríamos o voo dos pássaros, atravessando este céu luminoso em harmonias de rouxinol e dançariamos, enlaçados na aragem dos afectos, nos terreiros onde esvoaçam poalhas douradas, preguiçadas pelo sol. E quando a noite espreitasse em estrelas nos teus olhos, deixariamos o luar descer, de mansinho, nele repousando o amor derramado nessa dança.
Posso sempre entrar na florista e comprar um ramo escolhido por mim.
Ah!, mas hoje, fui eu que te escolhi a ti!

5.10.04

em flashback


Este caminho que percorro sem dar conta que o procuro. Ou não procuro, escolhe-me os passos, dirige-me o andar. E faz-se cinzento, em flashback de outras caminhadas em que encontro um horizonte fechado, não divisado em perspectiva.
O ar denso de humidade, repassa a fragilidade da roupa, entranhando-se-me na pele. Um forte arrepio faz diluir na paisagem o calor do corpo, em pequenas nuvens de vapor, lançadas em respiração entrecortada. Vejo apenas os tons cinza das árvores, em nada se distinguindo da paisagem interior que trago desenhada. A ausência de fundo irmana-se à aridez de emoções, sentidas ao de leve, para não acordar a névoa cuidadosamente adormecida, como amortecidos estão os sons exteriores no silêncio da mente, em manchas brancas onde se recorta uma mutez voluntária.
Então, aconchego os pensamentos, aperto-os com as mãos e cruzo-os junto ao peito.

Apenas quando curvo a estrada, um suave calor liberta-se do cachecol vermelho à volta do pescoço. Respiro fundo o ar brilhante da tarde luminosa

4.10.04

a imagem fugitiva era esta



não te encontro



Não te encontro. Não sei que te fiz, que não te encontro. Perdeste-te na noite, não naquela de todos os sonhos em que nos perderemos os dois que essa, guardo-a para mais tarde, mas nesta outra em que o movimento das mãos foi mais lento que o olhar. As palavras não te seguiram, nem sei se te deveriam seguir ou se serias tu a acompanhá-las, tomando-as para ti nesse afago em que a união torna indissociável imagem e pensamento.
Porque o pensamento corre célere, percorre distâncias, aquelas que as presenças demoram em chegar. Junto ao lago, despi o desejo de te ver e me entreguei à contemplação deste suave despertar na caruma dos pinheiros colhendo o perfume de narcisos no meu corpo. O sol espreitou este recanto, apanhando-te a distracção de amante zeloso e brilhou em mil reflexos transformando em fogo o horizonte. E a seguir, a noite trouxe o avivar desse desejo de que a terra quente nos encheu os corpos.
Mas não te encontro. Não sei que te fiz, que não te encontro.

Este seria um dos textos possíveis para a imagem que perdi e não consegui recuperar.

3.10.04

quero pintar emoções


(Ilha do Pico)

(...) Eu sou uma menina do mar. Chamo-me Menina do Mar e não tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta praia.

(...) Aqui despi meu vestido do exílio
E sacudi dos meus passos a poesia do desencontro.

(...) E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse
E o meu ser livre por fim florisse
E um perfeito silêncio me embalasse
.


(Sophia Mello Bryner Andresen)

Além da imensidão do mar, quero pintar de emoções a minha ilha. O verde dos campos que me aprendeu o caminhar, os doces coloridos das flores, as sombras rosadas de núvens toldando a madrugada, os amarelos roubados ao sol e semeados pelo vento.
Não quero a distância azul gelo, deslumbrada e solitária, quero antes o calor de um solo que me acolherá o corpo se, estendida, me entregar à quentura telúrica que me deu origem.
(obrigada Carlos, pela belissima imagem!)

2.10.04

a primeira rosa


entre balões, risos e danças de roda.

Lianor, pela verdura


Descalça vai para a fonte
Lianor, pela verdura;
Vai fermosa e não segura
...

O passo acertado pela pressa, cortou o ar em balançar seguro e ritmado. O sol ressaltava o brilho da manhã, lustrando as pedras, unidas em traçado de desenhos de basalto, enquanto na calma do mosteiro, pedra branca arrancada em rendilhados de formas estranhas, cheias de mistério, contrastava a saia ondulando em rodopio de dança, as mãos apertando o perfume das sardinheiras transbordantes em taças alinhadas na faixa de buxo.

Leva na cabeça o pote,
Os testos nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata


Na claridade coada através de fios de água, lançada em desafio no grande lago, transparece o bloco de pedras cimentadas como muros de castelo ou fortaleza. Lá dentro, protegido por silhuetas de oliveiras, o sonho espera. Em ziguezague, contorna o labirinto de verdura, conhecidos percursos em brincadeiras de lazer, e pisa a entrada larga de escadaria dupla, como sonhos desdobrados em apetências futuras. Cruza o espaço em céu aberto, e a luz atinge o rosto cegando os olhos por momentos. Só então se detém, procurando equilíbrio em visão clara, despudorada. E divisa o pequeno muro lateral, cheio de azul de mar e céu, coalhados dourados, caindo na cabeça curvada sobre o livro. Sorri. Hesita no caminho a seguir, descobrindo novas direcções convergentes num mesmo ponto. Passo solto, decidido, encurta a distância, suavizando o ritmo, como a querer chegar em silêncio. O cheiro a maresia levanta a névoa e o rosto abre-se em sorrisos. Chegou.

Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura:
Vai fermosa, e não segura
.

(Luís Vaz de Camões)